ARTE E ARTISTA

É de estranhar que na época em que a arte tem passado por tão formidáveis transformações o conceito objetivo de artista tenha permanecido absolutamente intacto. A idéia de que um artista seja um copista da natureza é tão repugnante quanto a de que um artista possa comentá-la através de seu temperamento. O conceito primordial de arte encerra a idéia de equilíbrio, eis porque achamos que um artista moderno não deva mais ser um cultor de temperamento e sim um estabelecedor de relações.
Cultivar um temperamento é desenvolver um ou mais elementos do nosso complexo, deixando em atrofia todos os outros.
Temperamento é, portanto, desproporção. A vida nos oferece necessariamente um complexo de emoções quase infinitas em suas escalas opostas, emoções que qualquer homem percebe sem ter absolutamente cultura especial. O fato de haver homens inicialmente propensos a certas emoções, apenas serve para provar que as deformidades morais, tanto como as físicas, também são hereditárias, coisa aliás sabidíssima.
Ser otimista ou pessimista é levar inicialmente um parti-pris. A vida nos oferece em seu curso as emoções as mais opostas, emoções necessariamente opostas, pois de outra maneira não teríamos relações construtivas.
A humanidade não tem sido outra coisa senão um homem submetido aos reflexos do ambiente dentro do tempo. Teoricamente, não temos dúvidas de que o homem possa ser estandartizado, achamos porém, que dentro do estado de justeza.
Atingir a este estado deve ser justamente o objeto das nossas cogitações atuais. O artista para nós hoje é justamente o homem que não só parte para este estado inconscientemente (como aliás todo o mundo) mas também que se expressa conscientemente, selecionando a vida com o produto de suas relações.
Todos os conceitos que se possa fazer de artista fora do essencialismo, transformarão o artista em objeto de arte, deslocando, portanto, a idéia de valor e subordinando-o ao papel de ponto de referência. A idéia justa das coisas só poderemos conseguir pelo método essencialista que consiste em receber sem parti-pris todas as emoções se operem em nosso inconsciente e que se transformem em afinidades ou repulsas segundo a dose que temos de instinto de conservação, ponteiro moral.
O papel de inteligência no essencialista deve estar restringido unicamente a fins exclusivamente terapêuticos, isto é, percebido o desequilíbrio, cuidar de sua reposição (justiça pessoal).
Achamos, portanto, que o temperamento é sempre uma moléstia tanto mais grave quanto mais intensa.
Consideramos que o mal é uma desproporção pela razão simples que produz desequilíbrio dentro da idéia necessária e essencial da unidade.

Ismael Nery

ORAÇÃO DE I.N. (1933)

Meu Deus, para que puseste tantas almas num só corpo?
Neste corpo neutro que não representa nada do que sou,
Neste corpo que não me permite ser anjo nem demônio. Neste corpo que gasta todas as minhas forças
Para tentar viver sem ridículo tudo que sou.
— Já estou cansado de tantas transformações inúteis.
Não tenho sido na vida senão um grande ator sem vocação,
Ator desconhecido, sem palco, sem cenários e sem palmas.
— Não vedes, meu Deus, que assim me torno às vezes irreconhecível
À minha própria mulher e a meus filhos,
A meus raros amigos e a mim mesmo?
— Ó Deus estranho e misterioso, que só agora compreendo!
Dai-me, como vós tendes, o poder de criar corpos para as minhas almas
Ou levai-me deste mundo, que já estou exausto,
Eu que fui feito à vossa imagem e semelhança.
Amém!

A VIRGEM INÚTIL (1932)

Eu não lhe pertenci porque não quis.
Não fui de ninguém, nem sou minha.
Nasci no dia 9 de julho de 1909
E não sei quando morrerei.
Fui criança que não brincou
E moça que não namorou.
Sou mulher que não tem desejos.
Serei velha sem passado,
Só gosto de estar deitada
Olhando não sei pra onde.
Passo horas sem pensar,
Passo dias sem comer,
Passo anos sem mexer
No quarto azul que me deram.
Nasci nele, vivo nele e nele talvez morrerei,
Se não aparecer aquele
Que sempre esperarei sem cansaço,
Que me fará levantar, andar e pensar
Que me ensinará o nome de meus pais e das partes do meu corpo.
Eu espero alguém que talvez não venha
Mas que sei que existe
Porque sei que existo.

CONFISSÃO (1933)

Não quero ser Deus por orgulho.
Eu tenho esta grande diferença de Satã.
Quero ser Deus por necessidade, por vocação.
Não me conformo nem com o espaço nem com o tempo,
Nem com o limite de coisa alguma.
Tenho fome e sede de tudo,
Implacável,
Crescente,
Eterna,
— De mim que me desprezo e me acredito um nada.

A NOIVA DO POETA (1932)


A minha noiva se reparte toda nas minhas quatro amantes
Sara, Éster, Rute e Raquel.
Sara tem o seu ar e o seu corpo,
Éster a sua cor e os seus cabelos,
Rute tem o seu olhar e o seu andar,
Raquel tem sua boca e a sua voz.
A minha noiva magnífica só existe
Na minha imaginação.

PRIMEIRA PARTE DO MEU POEMA (1933)

Os gemidos das nossas mães se misturaram na noite.
— A tua te punha na vida para mim.
A minha me lançava no mundo para todas.
És porém a minha grande favorita!
Tudo que tenho tem um pouco de ti.
— Os meus filhos, por exemplo,
Que aliás são teus.

POEMA (1932)

Deus criou duas almas.
Deu uma a Adão, outra a Eva.
Deu também a Adão e Eva
O poder de criar corpos
Para herdarem as almas que Ele lhes deu.